Em entrevista concedida à Folha de São Paulo sobre o regime militar, Fernando Henrique Cardoso diz que todos esperavam que o golpe de estado viesse de Jango. Leia, abaixo, uma das melhores e mais lúcidas entrevistas sobre a revolução de 1964 que saíram nos últimos tempos.
Em 1964, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era um
jovem sociólogo tentando entender o ambiente de radicalização política que
levou à queda de João Goulart. Consumado o golpe, soube que a polícia estava à
sua procura e foi para o exílio.
FHC voltou ao Brasil em 1968. Com os direitos políticos
suspensos pelos militares, criou um centro de estudos com outros intelectuais
perseguidos pela ditadura e entrou no Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
único partido de oposição autorizado a funcionar até 1980.
Passadas três décadas desde a volta dos militares aos
quartéis, ele acha que o país ainda tem uma democracia imperfeita e vê nas
dificuldades que a presidente Dilma Rousseff tem para se entender com o
Congresso um reflexo dos problemas que Jango enfrentou em seu tempo.
"Nossa democracia está se enraizando, mas ainda estamos
em busca de um modo mais eficaz", diz Fernando Henrique, que governou o
país de 1995 a 2002. "Ninguém quer dar golpe hoje no Brasil, mas ninguém
sabe muito bem como atender demandas que aparecem de repente, com esses
mecanismos lentos, muitas vezes desconectados, que são o palácio e o
Congresso."
Folha - Como o sr. via o ambiente político do país nos dias
antes do golpe de 1964?
Fernando Henrique Cardoso - No dia em que Jango discursou no
comício da Central do Brasil no Rio, viajei para São Paulo. Encontrei alguns
amigos no trem e conversamos sobre a situação. Havia convicção de que haveria
um golpe, mas as opiniões se dividiam. Golpe de quem? Lembro de uma reunião com
professores da USP dias depois. A maioria achava que o golpe viria do lado do
Jango.
Por que havia tanta desconfiança sobre as intenções do
presidente, e não apenas sobre os planos da direita?
O governo estava perdendo o controle da situação. Quando
Jango falava em reformas, havia mais palavras do que atos. Mas ele assustava os
proprietários e a classe média mais tradicional quando prometia reforma agrária
e reforma urbana. Era tudo muito vago e ninguém sabia o que viria depois. Nós
estávamos na Guerra Fria, e a tendência era radicalizar. Ou você estava para
lá, ou estava para cá. Jango nunca foi comunista, mas havia convicção no outro
lado, dos que eram contrários ao comunismo, de que viria, sim, um golpe do lado
dele.
Jango tinha condições para dar um golpe se quisesse?
Nenhuma. Seu famoso dispositivo militar não era nada. Como
também, acredito, o grupo disposto a efetivamente romper com a ordem
democrática era muito pequeno nas Forças Armadas. Mas no processo político
chega um momento em que se radicaliza, você não tem nada que o segure. No
começo, era uma busca por ordem, em vez de uma quebra do regime democrático.
Depois do golpe, pouco a pouco foi aprofundando um sentimento, aí sim, mais
autoritário, antidemocrático.
Para muitos estudiosos do período, não havia apreço pelas
regras do jogo democrático em nenhum dos dois lados. Os aliados de Jango também
achavam que o Congresso não funcionava e o pressionavam a fazer as reformas sem
ouvi-lo. Isso acirrou os ânimos?
Pesou muito. Isso vinha desde Jânio Quadros. Ele tinha tudo
na mão, eleito pelo povo, e um Congresso com o qual podia negociar, mas quis
impor a autoridade presidencial sobre o Congresso e não conseguiu. Com sua
renúncia e a posse de Jango, veio o parlamentarismo. Mas o novo regime não
tinha legitimidade popular, nem eficácia para governar. Jango conseguiu
recuperar forças com o plebiscito que restaurou o sistema presidencialista, mas
não conseguiu ter controle do sistema decisório no Congresso. É um dos
problemas da nossa democracia.
Pode explicar melhor?
Nos sistemas democráticos, os Congressos pesam. Você pode
gostar ou não deles, mas eles têm peso. E o que você tem que fazer se for
democrata é tentar levar o Congresso a tomar decisões de interesse nacional.
Para isso, o mecanismo mais saudável é convencer a opinião pública das suas
razões.
Está falando da atualidade?
A [presidente] Dilma tem que pedir mais ao Congresso, porque
a situação política exige, mas ela ainda não acertou o modo de lidar com ele. O
que quero dizer é que nossa democracia está se enraizando, mas ainda estamos em
busca de um modo mais eficaz. Ninguém quer dar golpe hoje no Brasil, mas
ninguém sabe muito bem como atender demandas que aparecem de repente, com esses
mecanismos lentos, muitas vezes desconectados, que são o palácio e o Congresso.
Por que a ditadura foi tão popular em alguns momentos?
Houve muito apoio empresarial também. Mesmo que não
estivessem de acordo com a violência, apoiaram. Os militares modernizaram a
economia, e isso os beneficiou na década de 70. Era natural o entusiasmo.
Quando o general [Emílio Garrastazu] Médici estava na Presidência, talvez a
época mais dura da repressão, ele era popular. A Arena [partido que sustentava
os governos militares no Congresso] vencia em toda parte. O povo não estava
preocupado com política e queria saber do seu bem-estar.
Por que a luta armada contra o regime fracassou?
As organizações de esquerda que partiram para a guerrilha
eram frágeis e divididas. Além disso, a realidade ia por um lado e o sonho por
outro. As bases sociais que eles tinham para fazer o que pretendiam eram
escassíssimas. E a repressão achou que estivesse diante de um inimigo
fortíssimo, e usou os instrumentos mais reprováveis e cruéis contra ele. Uma coisa
inconcebível. Aquilo era nada, e toda a força do aparelho de Estado foi
mobilizada.
O que explica o avanço da oposição nas eleições para o
Congresso a partir de 1974?
Eu achava que tinha chegado a hora de a intelectualidade, os
professores, os estudantes, deixarem de ficar fixados com a ideia da luta
armada e prestarem atenção na oposição institucional. O coração da maioria
palpitava por mudanças, mas muito poucos agiam, e eu achava que deveríamos agir
onde éramos mais capazes de agir, que era na luta institucional. Estava no
Cebrap quando Ulysses Guimarães e o MDB nos pediram ajuda para fazer um
programa de campanha.
Em que ele se distinguiu de programas anteriores?
Nós dizíamos ali o seguinte: Olha, agora não é só a questão
do regime autoritário, é a questão do salário, é a questão da mulher, é a
questão do negro, é a questão do índio, do sindicato'. Enfim, a ideia era ter
um programa que juntasse as aspirações da sociedade com as aspirações do meio
político. O povo não ia se mover só pela democracia. Tinha que ser uma
democracia que melhorasse a vida. A economia já não estava mais tão bem assim,
e isso nos ajudou também.
Milhões foram às ruas pedir eleições diretas para presidente
em 1984, mas a ideia não vingou no Congresso. Para quê aquilo serviu?
Embora não tivesse obtido resultados na hora, a campanha
pelas diretas foi importante para mudar a percepção das coisas, o sentimento do
país e do próprio governo. Todo mundo percebeu ali que não havia mais condições
de manter a situação daquele jeito. A campanha deu confiança à oposição, e deu
consciência ao governo de que não dava mais para continuar. Veja os movimentos
de junho do ano passado. Não deram em nada, aparentemente. Mas sempre dão em
alguma coisa. Vi isso na França, em maio de 1968. Aparentemente, não deu em
nada, mas mudou muita coisa.